quarta-feira, janeiro 30, 2008

Zeit


Que vestígio há da temporalidade, no objecto que tão vincadamente a marca? Tenho uma obsessão por relógios, mas a relação que estabeleço com o artefacto é uma mística tensional.
 
Tenho, por exemplo, um relógio de parede. Parado, porque me esqueço de lhe dar corda. E persegue-me, das sombras coloridas da infância, o desejo de ter um relógio de cuco.

Depois, houve um período da minha vida em que usei relógio de bolso, mas custava-me relegar a beleza do objecto para o interior esconso da roupa. E o tempus fugit não se compadecia com olhares furtivos para dentro da caixa da máquina.

Optei então pelo relógio de pulso, sem que tal tenha significado melhorias significativas na minha capacidade de antecipação ao atraso.

Parece-me que oscilo entre o estar em cima da hora ou bem por baixo do seu cutelo, de ponteiros analógicos. Sim, o digital não tem o fascínio mecânico da medida do tempo. O digital resume a temporalidade a zeros e uns, e eu preciso de ter, diante dos meus olhos e na minha consciência, os doze algarismos em confrontação absoluta comigo.

Não sei se a temporalidade é a longue durée, as memórias que se perdem à la longue (vividas e relembradas a dois, três, vários tempos) ou a projecção dos seres num plano contínuo, porque somos irremediavelmente sujeitos de dimensões temporais multiformes.

Sei que ontem houve um conjugação especial da temporalidade que me fez comprar mais um relógio. Passava, literalmente en passant (e aqui o tempo é o ritmo leve do passeio), quando o vi na montra de uma loja de outros tempos. Uma ourivesaria, que na montra anunciava, para breve, a mudança de ramo (sinal do tempo?). De fora não se via o interior da loja. Cortinas empoeiradas demarcavam os espaços. E, percebi depois de entrar, os tempos.

Lá dentro, atendeu-me um ancião. Educado e paciente, ele é uma figura magistral de outros tempos. É quase museológico. Para mim, é o retrato nostálgico de um tempo que talvez não se venha a repetir, porque o presente é inóspito e hostil demais. 

Nem as cortinas empoeiradas os puderam preservar: aquele espaço, aquela função; aquele sujeito. A loja que fechará em breve e onde quis comprar o relógio, é memória de um tempo e de algumas gentes que o timeless time engoliu, num vórtice veloz.